Políticas públicas ganham qualidade com participação social
Governos oferecem melhores respostas quando incluem universidades e centros de pesquisa
Em meio à crise sanitária causada pela pandemia da covid-19, o Brasil viu seus índices de permanência escolar, aprendizagem e saúde de crianças e adolescentes despencarem nos últimos dois anos. Até mesmo Estados e municípios com políticas consolidadas de atenção intersetorial encontraram dificuldades de se adaptar.
Na contramão desse cenário, graças a um conjunto de políticas públicas, prefeituras e governos estaduais conseguiram apresentar boas respostas por meio de um alto índice de coparticipação de organizações da sociedade civil, universidades e poder público.
Especialistas apontam que a qualidade da tomada de decisão na política pública melhora na medida em que considera as necessidades específicas de cada área. A elaboração de programas construídos a partir de dados sólidos, que permitem uma resposta mais assertiva aos problemas, é sinônimo de uma gestão mais eficaz.
Para o coordenador-geral do Centro de Estudos de Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas (FGV), Fernando Burgos, o sucesso nas políticas públicas exige ouvir as demandas da ponta e incluir universidades e centros de pesquisa na construção de soluções. Segundo Burgos, para funcionar, a política pública “precisa de uma equipe técnica e deve levar em consideração contextos de implementação heterogêneos”. “Quando o problema é complexo, as soluções precisam ser múltiplas.”
Uma das políticas que encontraram uma forma eficiente de balancear avaliação e execução foi implementada no Espírito Santo e premiada, junto com o Instituto Unibanco, por elevar o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do Estado.
O programa Jovem de Futuro atua no treinamento de gestores de escolas e comunidades. “São técnicas de gestão escolar e aprovação. Mas não a aprovação obrigatória, e, sim, um circuito de gestão para que os jovens sejam aprovados aprendendo, ficando na escola”, disse a pedagoga e subsecretária de Educação Básica e Profissional do Espírito Santo, Andréa Guzzo.
Responsável por acompanhar os treinamentos de diretores e coordenadores de colégios, Andréa atribuiu o sucesso do projeto à atuação nas comunidades. Colocar especialistas dentro das escolas de regiões mais pobres já fez o programa alcançar cerca de 3 milhões de alunos – de um total de 7,8 milhões de estudantes de escolas públicas no Brasil, segundo dados do Censo Escolar do ano passado.
A subsecretária destacou que a iniciativa levou o Espírito Santo ao segundo lugar no ranking de avaliação dos alunos que estão prestes a concluir o ensino médio em escolas estaduais, o Ideb, em 2019. Oito anos antes, o Estado ocupava a 13.ª colocação da mesma lista. Goiás, que tem a mesma parceria com o Jovem de Futuro, foi o primeiro colocado por um décimo: 4.7, ante 4.6 obtidos pelos capixabas.
“A parceria com o Espírito Santo é referencial por ter uma intensa taxa de valor agregado, com mobilidade significativa em vários indicadores, como aprendizagem, retenção e redução das desigualdades, e por perdurar mesmo com mudanças governamentais, o que é uma expressão do enraizamento na máquina pública desses procedimentos de gestão orientada para resultados a partir de evidências”, afirmou o superintendente executivo do Instituto Unibanco, Ricardo Henriques.
A pesquisadora Beatriz Caetana, do consórcio europeu Urbinat, focado em soluções baseadas na natureza para cidades, também defendeu o caráter intersetorial de políticas públicas, independentemente da área. “A ideia de políticas baseadas em evidências está muito ancorada em uma necessidade de envolver diferentes segmentos da sociedade na coleta, produção e disseminação da informação”, ressaltou Beatriz.
Esse tipo de parceria entre diversos setores, de acordo com a pesquisadora, é essencial porque as pessoas conhecem melhor suas necessidades e podem apresentar saídas criativas para os problemas. “Quanto mais informação as pessoas têm sobre o próprio contexto, maior é a capacidade de intervirem sobre sua realidade e contribuírem na produção e uso de evidências”, afirmou a socióloga. Com isso, disse ela, políticas que alcançaram resultados satisfatórios costumam contar com a participação dos usuários em todas as etapas de sua execução.
Em Sergipe, uma iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), em parceria com o poder público, conseguiu recuperar a matrícula de 4,1 mil crianças e adolescentes que tinham deixado a escola.
O programa Busca Ativa Escolar chegou ao Estado em 2018 e ganhou status de política pública em todos os municípios sergipanos. No Brasil, essa estratégia de enfrentamento da evasão escolar chegou a mais de 3 mil cidades e levou à rematrícula de 112 mil crianças. No momento, são 270 mil casos acompanhados diretamente no País.
“Quando saúde, educação e assistência se unem para colocar a criança na escola, garantir a matrícula e a permanência, a sensibilização das famílias se fortalece”, afirmou a coordenadora do Busca Ativa Escolar em Sergipe, Rute Rosendo, representante da Secretaria de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura.
O Busca Ativa Escolar é uma metodologia social que oferece um trabalho técnico de formação das equipes municipais. “Muitas crianças e adolescentes não voltam para a escola por uma questão de pobreza multidimensional, uma série de fatores sociais, não apenas a aprendizagem e a educação”, disse a chefe de Educação do Unicef, Mônica Pinto.
Pela plataforma, as equipes conseguem acompanhar a situação do município e relacionar as informações de cada área, além de participar de cursos. O trabalho passa por identificar a causa que leva a criança a não frequentar a escola, criar um plano de ação a partir do perfil municipal e, se houver a rematrícula, trabalhar pela permanência do aluno.
“Não adianta rematricular uma criança se todas as questões de proteção ou saúde não forem condicionadas”, afirmou Mônica. O sucesso, na avaliação de Rute, está na construção de vínculos, mesmo no período de pandemia.
A premiação que reconheceu a iniciativa no Espírito Santo e a parceria com o Instituto Unibanco foi organizada pelo Centro de Aprendizagem em Avaliação e Resultados para a África Lusófona e o Brasil (FGV EESP Clear), o Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) e a Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
O economista Paulo Tafner, diretor-presidente do IMDS, disse que o próximo projeto será criar uma plataforma para expor políticas públicas bem-sucedidas internacionalmente. De acordo com Tafner, essa “base” deve ajudar prefeituras a “buscar ideias simples para problemas corriqueiros”.
Um dos exemplos é uma técnica de melhoria em moradias no Equador, com uso de cimento e materiais antitérmicos, que previne a morte de crianças por problemas respiratórios (mais informações nesta página). Todos os programas vão passar por auditoria. A discussão sobre a necessidade de incluir o tema da mobilidade social na agenda nacional vem sendo feita há muito tempo no IMDS, segundo Tafner.
Analistas são unânimes ao afirmar que a elaboração conjunta de uma política pública não tira a responsabilidade do poder público de assegurar direitos. Três desafios, porém, atravessam esta interlocução, segundo o especialista em políticas públicas Lucas Ramos Lopes, secretário executivo da Coalizão Brasileira Pelo Fim da Violência Contra Crianças e Adolescentes.
Para Lopes, políticas públicas aplicadas em qualquer esfera – municipal, estadual ou federal – precisam garantir o monitoramento, o uso das melhores evidências disponíveis e o financiamento do projeto. Quando todos esses fatores não estão contemplados, observou, os programas têm mais dificuldade em se consolidar em decorrência de desmantelamento de conselhos de direitos, subfinanciamento ou falta de interesse político.
“Temos poucas avaliações de impacto, o que faz com que a priorização de investimento seja mais política do que técnica”, disse Lopes. “Isso acaba sendo uma fragilidade importante, que é acompanhada de seguidas interrupções da construção de políticas.”
Recentemente, a coalizão apresentou um estudo de práticas inovadoras de enfrentamento da violência na Câmara dos Deputados. Em comum, as estratégias buscam inserir a construção, a execução, o monitoramento e a avaliação das políticas públicas no ciclo orçamentário.
‘Cidadão tem chances de sair da pobreza numa sociedade com alta mobilidade’, diz Paulo Tafner
Diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), o economista Paulo Tafner vem catalogando exemplos de boas práticas em outros países que podem ser usadas no Brasil para melhorar a vida das pessoas. Segundo ele, para além da pobreza e da desigualdade, a ideia é fomentar iniciativas que promovam a mobilidade social.
Como foi a decisão de fundar o IMDS?
A gente (eu e Arminio Fraga) vinha discutindo a necessidade de incluir o tema da mobilidade social na agenda nacional. Pobreza e desigualdade já têm agenda e atores bem definidos, mas não a mobilidade, elemento crucial dentro das dimensões de pobreza e desigualdade, e uma forma de superação da pobreza. Se o cidadão nasce pobre, isso é um acaso. Mas, numa sociedade com alta mobilidade, ele tem grandes chances de sair da pobreza.
Qual a ideia do prêmio?
A ideia é reconhecer o mérito dos gestores públicos espalhados nos municípios e em todos os Estados e DF, enfrentando as dificuldades diárias de tratar da pobreza e da desigualdade no País. São muitas iniciativas boas em várias áreas.
Um exemplo?
No Equador, para reduzir a incidência de doenças das vias aéreas respiratórias de crianças pobres, pesquisadores descobriram que o piso de chão batido num lugar frio e úmido causava a morte de muitas crianças. Cobriram o chão com cimento e material antitérmico, um material baratíssimo. Foi uma ideia simples e barata. Temos agrupado em uma base de dados exemplos do mundo inteiro, catalogados, e queremos lançar, em breve, um banco de dados online para expor esses exemplos.
Quando será lançado?
Em breve vamos divulgar. Por enquanto, estamos trabalhando na catalogação de todo esse material, conhecendo os gestores, documentando tudo.
As etapas de elaboração de uma política pública
Identificação do problema
Por meio de dados, evidências e diagnósticos, a situação é caracterizada em uma análise técnico-administrativa. Neste processo, é fundamental a participação ativa de centros de pesquisa e do usuário da política, para que as soluções sejam construídas a partir de um bom diagnóstico
Construção de agenda
O diagnóstico precisa ser pautado na agenda pública e tomado como prioridade pelas lideranças
Formulação da política
Pesquisadores, organizações e servidores atuam em conjunto na construção de alternativas, com o objetivo de encontrar soluções viáveis aos problemas apresentados. É comum que outras experiências sejam levadas em consideração para o desenho da política
Tomada de decisão
Diversos modelos são aplicados no momento em que os tomadores de decisão, responsáveis por dar andamento à política, definem quais caminhos são mais viáveis. Aqui surgem fatores técnicos e políticos que impedem ou permitem o avanço da solução
Implementação
A política é efetivamente executada nos territórios
Avaliação
Ponto considerado fundamental, pois sustenta a reativação do ciclo. Avaliar a execução permite identificar avanços ou retrocessos na estratégia
Desafios
O ciclo passa por constantes mudanças. Especialistas apontam que sua execução exige, com frequência, a união destes fatores com a vontade política e a consonância com a questão orçamentária Fonte: Estadão Foto: Foto: Taba Bendicto/Estadão